Programa da ONU reconhece trabalho de servidor do TRT12 no combate ao HIV.
Não faz muito tempo que o micromundo do Twitter debatia o uso ou não de camisinha frente à possibilidade de se usar o coquetel de medicamentos chamado Profilaxia pré-exposição (Prep). Sem entrar no mérito dessa questão, que é muito mais delicada do que se possa explorar nestas linhas ou em alguns poucos “fios” daquela rede social, o fato é que o ano é 2019 e vivemos um novo surto de HIV e outra infeções sexualmente transmissíveis, sobretudo entre jovens.
Nesse contexto, qual não foi a surpresa quando, no meio de uma tarde qualquer durante a semana chama ao telefone um senhor que quer falar sobre seu projeto intitulado “Camisinhas Poéticas”. A voz que me falava parecia de alguém na casa dos 60 anos, sendo assim, provavelmente não se tratava de brincadeira ou alguma forma de trote.
Com muita calma, o senhor João da Cruz Ramos me explicou que era um associado, servidor aposentado na cidade de Itajaí (SC), e que viria a Brasília (onde fica a sede da ANAJUSTRA) pra um evento da Unaids (programa das Nações Unidas para o combate à Aids). Contou ainda que desejava vir pessoalmente à associação apresentar o projeto.
Terminada a conversa, liguei para a colega que cuida do Espaço Cultural. Ela me disse que já conhecia o JC (como gosta de ser chamado) e que eu poderia tocar a pauta. Uma rápida busca no Google me informou que JC fora publicado, não só no portal da ANAJUSTRA, mas em vários veículos jornalísticos – inclusive com uma entrevista para o Jô Soares em 2013.
Depois dessa prévia, eu não sabia o que esperar da minha fonte ou da matéria que, dali a alguns dias, teria que escrever. Mas, certamente, não esperava o senhor de estatura mediana, que chegou à sede no finzinho do expediente, sorrindo e cumprimentado os presentes como um velho conhecido. Nos sentamos na sala reservada para atender aos associados.
O personagem
Ao menos na idade, minhas primeiras impressões tinham sido corretas. JC é um senhor de 66 anos, tem três filhas de relacionamentos anteriores e quatro netos. Casado, mas sem filhos com a atual esposa. É maranhense, da cidade de Paço do Lumiar, mas radicado em Santa Catarina desde 1981 – o que explica seu curioso sotaque oscilante, ora reconheço um chiado que me lembra amigos ludovicenses, ora o uso de expressões que só se escuta entre os migrantes do Sul do país.
Sentamos frente a frente e ele começou a me contar a história das camisinhas poéticas. “O projeto começou há 22 anos. Tive a ideia porque em Itajaí muitos jovens estavam contraindo HIV e ficando doentes. Achei aquilo uma pena. E pensei, por que não? Bati na porta da marca de camisinhas Olla, cuja fábrica ficava em São Roque (no estado de São Paulo). Eles disseram que o projeto era muito interessante, mas que não teriam condições no momento porque se focavam em expansão da fábrica e outros detalhes. Daí me presentearem com duas unidades de camisinha”, lembra sorrindo.
As camisinhas
Mas o primeiro “não” foi apenas um impulso para que JC insistisse em seu propósito. Ele conta que ligou para várias pessoas da empresa, até que conseguiu ser atendido e recebeu 720 preservativos que foram o pontapé inicial do projeto. “A partir daquele momento estabeleci uma relação muito boa com a empresa. Em 15 anos eles chegaram a me mandar 300 mil camisinhas em pequenos lotes. Até que a marca foi incorporada por outra maior e nosso contato cessou”, lamenta.
Mas nem esse contratempo parou o servidor, que se engaja seriamente no projeto. “Em 2013, depois que dei entrevista no Jô Soares, a Hipermarcas – que comprou a fábrica de São Roque – me ligou e mandou mais algumas unidades de preservativos para que pudesse continuar com o projeto”, diz.
Segundo JC, além de auxiliar na conscientização pelo sexo seguro, sua iniciativa visa “humanizar” o assunto entre as famílias. “Tudo hoje está muito no automático. O marido chega em casa do trabalho, a esposa está com um problema no olho e, se ela não fala, ele nem nota. As relações andam muito no automático. E as poesias servem para isso também. No meu livro, tem algumas que fiz especialmente para a minha esposa e acredito que os poemas podem ser um bom ponto de partida para que os casais quebrem o gelo, brinquem, conversem, aproveitem de verdade o momento”, defende.
O aposentado também comenta que suas poesias auxiliam pais e filhos a começar a conversar livremente sobre sexo, derrubando alguns tabus sobre o assunto. “Certa vez, uma mãe me ligou para agradecer. Ela disse que pegou a camisinha, colocou em cima da cômoda e deixou que a filha visse. Quando a menina, de uns 15, 16 anos, leu a poesia, a mãe se sentiu confortável para começar a falar sobre sexo com ela. Seria muito legal que os pais pudessem ir à farmácia, comprar uma camisinha e orientar seus filhos. Mas muitos ainda não têm essa abertura, por isso o projeto ajuda muito também nesses casos”, se orgulha.
A muitas mãos
O trabalho é grande e tudo é feito com a ajuda da família. “Minha sogra, meus amigos próximos, além da esposa, todos que passam lá em casa me ajudam a dobrar as embalagens e preparar cada camisinha dessas. Além disso, as aquarelas são feitas, desde o primeiro ano, por uma amiga muito querida, agente cultural importante na cidade de Itajaí, Lúcia Mendes”, comenta.
Exemplar com poesia de autoria de J.C.
Ação séria
JC explica ainda que “todos podem fazer brincadeiras com as camisinhas, menos eu”. Isso porque ele se preocupa muito em, ao divulgar suas propostas por todos os lugares onde vai, passar a imagem de seriedade do projeto. “É preciso que as pessoas entendam que não é uma brincadeira para mim. Então, quando começam as piadinhas eu sorrio e mudo de assunto. Faço isso com muito carinho”, argumenta.
E toda essa dedicação e seriedade já levou o servidor longe. Além das várias cidades brasileiras pelas quais passou, ele foi ao 7º Fórum Social Mundial, realizado na cidade de Nairobi, no Quênia. “Lá, como aqui, fui muito bem recebido. Todos gostaram e se alegraram muito com o projeto, pois nunca tinham visto uma iniciativa parecida. Não consegui patrocínio para a viagem, fui com meus recursos, mas fiquei muito feliz de ter sido convidado para um evento desse porte”, emenda.
Por fim, a ideia chegou à Unaids, que conseguiu mais preservativos e patrocinou novas embalagens para que se imprimissem as poesias. As unidades serão distribuídas a partir de 28 de novembro deste ano, antecipando a campanha do dia 1º de dezembro, dia Mundial de Combate à AIDS, com o título “Ação camisinha poética – humanizando o uso do preservativo”. Serão dez mil unidades com poemas sortidos.
Fonte: Jéssica Gotlib, jornalista da ANAJUSTRA. (www.anajustra.org.br)